segunda-feira, março 19, 2012

Pispalhas Colheita 2010

Há vinhos que sejam o que forem são excelentes! Não digo isto com qualquer cinismo. Justifico. O prazer de fazer algo nosso ninguém pode tirar. Mostramos aos amigos o fruto do nosso esforço, ainda que a coisa esteja cheia de defeitos.
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Duvidam? O que se pode dizer de toda a multidão, que se não una, de pais, tios, «tios», madrinhas e padrinhos e amigos que ostentam, nos locais de trabalho, os gafanhotos, riscos e tosquices da lavra das suas crianças?
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– O meu filho é o mais lindo e o mais doce!
– Ai que desenha tão bem!
– Ai, tem tanto jeito.
A criança é sempre sobredotada. Mesmo quando canta mal e faz récitas lá por casa.
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Ah, pois, as crianças! E os adultos que frequentaram uma escolinha de desenho e pintura e fazem umas coisas toscas que têm o desplante de se orgulharem e pôr na parede lá de casa?
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E as pianadas autodidactas? E o chefes de cozinha caseiros que queimam a carne e a secam no forno, mas que está tão gostozinha? E os ovos mexidos da mãe fritos em margarina?
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Bem, acho que já perceberam o meu argumento. Tudo isto é válido e justo. Pelo menos aos nossos olhos e aos dos nossos. Não importam os defeitos, mas o esforço, carinho e empenho nas nossas obras. Obras que, não ficando num «museu» para a posteridade nem num compêndio da especialidade, são memórias felizes. Valor? Só o subjectivo (se é que há algum concreto e objectivo – isso é outra estória) e o que pode resultar de um dia, longínquo, do achamento arqueológico.
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Pois, outro dia chegou-me, via MM e AT, um vinho caseiro… aqueles purinhos do produtor, que mais ninguém tem nem encontra. Raridade que se oferece a quem damos valor pessoal. Um amigo ofereceu-lhes uma botelha, que quiseram partilhar comigo, com o devido assentamento do vitivinicultor, na condição de lhe dedicar uma nota no blogue.
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Cumpro aqui o compromisso, com prazer e honra. É um vinho que se fosse posto à venda, e tivesse alguma pretensão, levaria nota 1. Mas não, é um líquido honesto, que não quer ser mais do que aquilo que é. Cheio de defeitos, por isso mesmo didáctico. Penso que todo o enófilo deve calibrar o gosto e cultiva-lo, com toda a espécie de vinho, dos especiais aos fora de série, bons, medíocres, maus, étnicos, populares, curiosos e analfabetos, não que esta seja uma hierarquia classificativa. Chama-se cultura geral.
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O Pispalhas é um palheto, coisa desaparecida das prateleiras da seriedade, que se centra nas fáceis exigências do mercado, ainda que quase ninguém os possa comprar. Hoje, tanta gente faz vinhos e vinhinhos internacionais que podem ser de qualquer lado do mundo e que, por bons que possam ser, não têm interesse nenhum.
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Gosto da cultura do vinho, da etnicidade, da diferença. Reconhecendo a qualidade que têm ou deixam de ter, gosto que hajam vinhos como o Pispalhas, que mantém viva o que são séculos de tradição.
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Pispalhas, que é vinho que não se encontra, nem me aparece nos dicionários cá de casa. Palavra escondida, bem aplicada a um vinho anónimo.
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Se há quem defenda que se deve acompanhar uma comida local com um vinho com a mesma origem, este, como uma multidão de vinhos amadores, deve ir com a comida caseira da sogra, que nos engorda nas visitas à aldeia onde reside, e nos serve iguarias de pica no chão, de porco morto em casa e hortaliças da horta.
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Dizia, o Pisplhas é um palheto. O rótulo, feito em impressora caseira, tem muito mais informação do que a maioria dos vinhos profissionais. O que demonstra o orgulho e vontade de quem o faz.
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Sem contra-rótulo, a fronha diz tudo: fotografias «piqueninas» dum cacho de uvas e do pai ou avô do viticultor. Em baixo, a quase todo o comprimento do papel, a foto da ponte antiga de Chaves.
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Dizeres de «vinho tinto regional, colheita de 2010», sem qualquer selo oficial, bem se vê. Para quê, se é genuíno e autêntico e não vai mais longe do que a adega na garagem? Diz assim: «Produzido na encosta solarega do Tabolado, Outeiro Seco, a partir de castas tintas – Trincadeira, Tinta Barroca, Touriga Nacional, Aragonez… e de castas brancas, – Malvasia, Bical (borrado das moscas), Grês, Bual, Verdelho… – vinificado em barris de madeira, apresenta uma cor suave e aromas a frutos vermelhos maduros». Tem 15 graus de álcool e é assinado por António Chaves.
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Como se vê, apesar do enumerar das castas, com sinonímia escrita não ser a usada no local donde vem, dever ser punido com palmatória, tem mais informação que tanta coisa, mesmo das caras e desejadas, que desfilam nas revistas e supermercados.
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O que dizer? Tem o vermelho desbotado dos palhetos, mas é baço, translúcido. O aroma é austero, não diz nada… nem floral, nem vegetal, nem frutado, nada. Nem mesmo como muitos que se revelam depois de abertos há horas. Na boca é enjoativo, doce… é chato, não há ali acidez que acorde a boca. Encortiça a língua, sem que se veja aí vantagem ou intensão.
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Todavia, é, para o produtor, certamente, o melhor vinho do mundo. Compreendo e aceito. Um aplauso para António Chaves, porque mantém viva a produção caseira de vinho, para autoconsumo, para os amigos, para a gente da terra e, talvez, para alguém que lhe bata à porta de casa para o comprar.
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Origem: sem indicação (Chaves)
Produtor: António Chaves & Filhas
Nota: X/10

1 comentário:

J Pires/C Soares disse...

Fantástico post,sinceramente do melhor que vi por esta blogosfera!Só me resta dizer:obrigado!

Carlos Soares
wineofus@blogspot.com